Perdão, uma prática a ser cultivada (Mt 18.21-35)

Por que os filhos de Deus têm tanta dificuldade de se entender? Por que as vezes temos a impressão que os relacionamentos dos crentes da nossa igreja são tão difíceis? Há um pequeno poema de autor desconhecido que expressa perfeitamente esse problema:

“Viver no céu, com os santos que amamos, certamente será uma glória.
Viver na Terra, com os santos que conhecemos, isso é outra história!”[1]

Amar a todos é fácil, o desafio é amar quem nos persegue. Alguém disse: “Eu amo a humanidade, o que eu não tolero são as pessoas”. Infelizmente, um dos pecados mais presentes na igreja é o pecado da mágoa e, nestes e muitos outros casos e situações, o perdão se faz necessário.

C. S. Lewis disse que “é mais fácil falar sobre perdão do que perdoar”. [2] É fácil falar sobre perdão até ter alguém para perdoar. Mas não podemos omitir a necessidade de falarmos e, sobretudo, vivermos o perdão. E, sobre isso, nosso texto tem muito a nos ensinar.

Contextualização

No capítulo 18 de Mateus, Jesus repreendeu seus discípulos por seu orgulho e desejo de grandeza aqui na Terra (Mt 18.3) e lhes falou de três elementos essenciais para a harmonia e unidade entre o povo de Deus: A (1) humildade (Mt 18.1-14); (2) a honestidade (Mt 18.15-20); e (3) o perdão (Mt 18.21-35). Nós trataremos deste último.

Jesus nos mostra neste capítulo que os padrões (e números) celestiais são muito diferentes, inclusive quanto ao perdão. E através dos Seus ensinos, tiraremos lições importantes, pois o perdão é uma prática a ser cultivada.

Devemos cultivar esta prática, pois:

1. O perdão deve ser um hábito em nossas vidas (v. 21-22)

21 Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? 22 Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.

Os versículos anteriores ao nosso texto, mais especificamente do 16 ao 20, mostra-nos o desejo do ofendido de oferecer o perdão. Não devemos esperar que ofensor tome inciativa; devemos vencer nosso próprio orgulho, nosso coração altivo e ferido, afim de restaurarmos os relacionamentos machucados por um problema. No Reino de Deus, quer ofensor ou ofendido, ambos são responsáveis pela união, harmonia e comunhão plena no meio do povo de Deus, no seio da igreja do Senhor.

Pedro, ao ouvir este ensino ficou imaginando até onde o perdão deveria ser estendido por repetidas ofensas. “Até sete?”, sugeriu ele no v. 21. Analisemos as palavras deste apóstolo impetuoso e a resposta deste Mestre misericordioso.

Primeiro, as palavras de Pedro revelam necessidade de reconhecimento

Os rabinos ensinavam (com base em Amós 1.3; Jó 33.29, 30) que bastavam perdoar o mesmo ofensor três vezes. Pedro aparentemente era conhecedor deste ensino rabínico acerca do perdão. Sua pergunta, já propondo uma resposta maior que o número recomendado, pode mostrar, quem sabe, um desejo de reconhecimento.[3] Talvez quisesse ser elogiado por Jesus, afinal, ele havia dobrado o número sugerido e acrescentado mais um, demonstrando uma suposta generosidade em sua ação. Jesus, entretanto, mostra em sua resposta que o número que ele propunha ainda era pequeno e que ele não estaria fazendo mais do que o mínimo diante do esperado.

Uma atitude assim, observem, não é diferente de uma criança que quer reconhecimento dos pais por ter sido obediente em algum aspecto ordenado. A criança não fez mais que sua obrigação como filho, entretanto, quer reconhecimento e, às vezes, até recompensas por fazer o que era esperado em sua condição filial. Nós, quem sabe, somos como Pedro e esta criança, querendo ser abençoados simplesmente por sermos obedientes. Não que a obediência não seja abençoadora, já que ela produz santidade, mas a motivação da obediência nunca deve ser as bênçãos de Deus, pois já recebemos a benção maior, a saber, a salvação. 

Segundo, as palavras de Pedro o exclui da condição de ofensor

Pedro pressupôs que seu “irmão pecaria contra ele”, sem se incluir na possibilidade de errar também. Essa atitude revela um coração orgulhoso, com tendências ao legalismo, afinal, somente ele teria que perdoar, não ser perdoado. É sempre mais fácil identificar o erro dos outros, não os nossos. É comum termos conselhos para a vida dos outros, mas para nossas vidas não temos “conselhos” que nos tira de nossa lama moral.

Jesus já tinha falado sobre isso anteriormente, em Mt 7.3-5:

“Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão.”

A atitude de Pedro por si só, já é condenável, já que desobedecia uma admoestação de Jesus, contudo, infelizmente, não é rara em nosso meio. Temos dificuldades de reconhecer o óbvio, que somos tão pecadores quanto aqueles que gostaríamos de condenar.

Terceiro, as palavras de Jesus demonstram um hábito a ser aprendido

No v. 22 do nosso texto em voga, Jesus responde algo que Pedro não esperava: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.” O produto desta multiplicação matemática é 490 vezes. Mas, embora números sejam usados, não é da exatidão deles que se trata a resposta de Jesus. O Senhor propõe aqui que não há limites para o perdão. William Hendriksen, ao comentar este versículo, diz que o perdão “é um estado de coração, não matéria de cálculo. Seria tão mesquinho perguntar: ‘Até que ponto devo amar minha esposa, meu esposo, meus filhos?’ Ou perguntar: ‘Até que ponto perdoarei?’”[4] Mas além disto, há algo a mais aqui: Jesus está no dizendo sobre um hábito a ser adquirido.

Segundo o dicionário online Michaelis, Hábito é a “inclinação por alguma ação, ou disposição de agir constantemente de certo modo, adquirida pela frequente repetição de um ato, tornado em grande parte inconsciente e automático”[5]. Se alguém pecar contra nós dez vezes, é possível que nos lembremos exatamente como foi cada situação. Mas imagine que alguém que nos ofende cem, duzentas, trezentas, ou até mesmo mais de quatrocentas vezes? Nossa memória não conseguiria registrar cada uma das ofensas, e com o passar do tempo, o perdão seria estendido tantas vezes, que, assim como muito bem conceituou o dicionário, se tornaria um hábito. É precisamente isto que Jesus está dizendo aqui: devemos perdoar tantas vezes, até perdermos as contas, pois não há limites para o perdão pois ele deve ser um hábito.

Há outros textos nas Escrituras que nos mostra a importância de cultivar bons hábitos. Pv 22.6, nos diz o seguinte: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele.” O princípio por detrás deste texto é parecido com o de Jesus para o perdão. Nós devemos ensinar nossos infantes desde sua tenra idade o caminho que devem andar e, por terem andado tanto tempo neste caminho, criarão o hábito e, ainda velhos, não se desviarão dele.

Aplicação

Em nosso cotidiano também verificamos este princípio quando nos propomos a fazer algo que não estamos acostumados, como por exemplo, estudar, reeducar nossa alimentação, nos exercitar, ler a Bíblia, orar, parar de falar palavras torpes (vulgo, palavrões), etc. Tudo deve ser feito compromissadamente e repetidamente, até que nos habituemos a fazer automaticamente.

  • Hábitos são poderosos. Dependendo de quais for, são escravizadores. Mas há hábitos libertadores. Você trabalhar para cultivar o hábito do perdão? 
  • Você, como Pedro propõe, conta, quantifica as ofensas que lhe fazem? Alimenta crescentemente mágoas das práticas do teu próximo, do teu familiar, do teu tutor, do teu colega de moradia aqui no seminário?
  • A sua ênfase é sempre na ofensa dos outros, se esquecendo das suas?

Nós devemos cultivar bons hábitos, entre eles, o hábito do perdão é de extrema importância para uma vida saudável na igreja de Cristo.

Mas falando assim, é possível que concluamos que o perdão pode vir simplesmente por condicionamento habitual, um costume involuntário. A continuação do nosso texto retirará esta possibilidade e nos mostrará os motivos teológicos de Jesus para estendermos sem limites o perdão.

Porque o perdão é uma prática a ser cultivada. Devemos cultivá-la, não apenas pelo dever de ser um hábito em nossas vidas. Mas também, porque:

2. Deus já nos perdoou abundantemente (v. 23-27)

23 Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. 24 E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. 25 Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga. 26 Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. 27 E o senhor daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida.

Depois de responder Pedro, Jesus conta-lhe uma parábola para ilustrar seu ensino, conhecida como parábola do credor incompassivo. Ele a começa contar, dizendo: “Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos.” (v.23) Este rei, chamado de senhor no restante da parábola, ao fazer uma prestação de contas com seus empregados, descobre que há um servo que lhe deve 10 mil talentos (v. 24). Aqui cabe algumas considerações sobre esta unidade monetária:

Talento: Medida de peso igual a 34,272 kg (2 Sm 12.30; 2 Rs 18.14). Um talento era a mais alta unidade monetária da moeda corrente, e era equivalente a seis mil denários.

Denário: Moeda romana de prata, que era o pagamento por um dia de trabalho (Mt 20.2).

Esta dívida de 10 mil talentos é tão grande que daria mais de 340 toneladas de ouro. Um servo ganhava apenas 1 denário por dia de trabalho, ou seja, seis mil vezes menos que apenas 1 talento, quem dirá 10 mil. Para ilustrar a magnitude da dívida, podemos compará-la com a informação de que o salário anual de Herodes Antipas[6], um Governador Romano (o mesmo que matou João Batista), perfazia cerca de 200 talentos[7]. Diante destes dados, podemos analisar como mais propriedade a reação do servo devedor e do senhor cobrador.

A reação do servo devedor

Uma dívida assim é gigantesca, impagável, e esta era a condição do servo devedor. O rei, então, ordenou que ele, a mulher, filhos e tudo que ele possuía fosse vendido (v. 25). É relevante dizer que a lei permitia ao credor, ordenar a venda dos bens e até mesmo do próprio devedor e sua família para escravidão (pelo menos por um tempo definido), afim de que a dívida fosse sanada (Cf. Ex 21.2; Lv 25.39; 2Rs 4.1; Ne 5.5,80). Em resposta a ordem do rei o servo devedor, diz o v. 26, “prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei.”

Diante desta reação, podemos nos perguntar: Levando em consideração o tamanho da dívida, pedir mais tempo adiantaria? O servo devedor não estaria sendo otimista (ou até presunçoso) por se achar capaz de conseguir? Nem se ele tivesse mais tempo conseguiria pagar toda a dívida. Como já foi dito, o salário de um servo era apenas 1 denário por dia de trabalho. Ele provavelmente ganhava isso. Sendo assim, se ele não gastasse com mais nada e desse todo o dinheiro que ganhasse por seu trabalho para seu credor, iria ter que trabalhar mais de 164 mil anos. Este servo devedor agiu de má fé, pois sabia que não poderia pagar, ainda que ganhasse mais tempo.

Somos assim perante Deus, completamente devedores, inadimplentes, impossibilitados de trabalhar o suficiente e de realizar boas obras para pagar nossa dívida de pecado, ainda que tenhamos todo tempo do mundo.

A reação do senhor cobrador

O senhor também sabia que aquele homem não poderia pagar tamanha dívida, então, o despede, perdoado. Este rei age com misericórdia para com aquele servo devedor, assumindo toda a dívida do servo para si. Se pensarmos contabilmente chegaremos à conclusão que o prejuízo ainda existia, mas o senhor cheio de misericórdia assumiu todo ele, para poder perdoar. Deus é como esse rei misericordioso e nós, como este servo, antes devedor, agora, muito perdoado.

Há uma história que ilustra com propriedade esta realidade do abundante perdão divino:

Conta-se que certo homem pecou e pediu perdão a Deus. E o Senhor lhe perdoou. O homem, leve e feliz, continuou o seu caminho. Mais adiante, porém, cometeu um novo deslize e ficou muito triste e envergonhado. Sua alegria de viver foi-se esvaindo e ele começou a fugir da presença de Deus. Ao vê-lo tão triste e fugidio, Deus perguntou-lhe:

– Por que andas tão triste, meu filho, fugindo de mim?

– Estou com vergonha, Senhor.

– Vergonha do quê?

– Por causa deste meu pecado.

– Basta que me peças perdão, filho, e, se estiveres arrependido, eu o perdoarei.

– Eu estou arrependido, Pai, mas estou com vergonha, pois esta é a segunda vez que lhe peço perdão por este mesmo pecado.

Mas, para sua surpresa, Deus lhe perguntou:

– Segunda vez? E qual foi a primeira?

É isto que vai nos dizer 1 Jo 1.9: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” E é justamente por termos recebido (e continuarmos recebendo) o perdão de uma dívida impagável que devemos perdoar incessantemente. Em Lc 17.4, diz: “Se, por sete vezes no dia, pecar contra ti e, sete vezes, vier ter contigo, dizendo: Estou arrependido, perdoa-lhe.” Já, Cl 3.13, dize-nos: “Suportai-vos uns aos outros, perdoai-vos mutuamente, caso alguém tenha motivo de queixa contra outrem. Assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós”. Assim como o Senhor Deus, devemos fazer. Nós só podemos dar, porque já muito recebemos. Nós só podemos perdoar, pois já fomos muito perdoados. Nenhuma ofensa que fizerem contra nós será tão grande quanto a ofensa que fazemos contra Deus. Só podemos cultivar esta prática porque Deus já nos perdoou abundantemente.

Por fim, nós devemos cultivar a prática do perdão, pois:

3. O perdão cura as relações (v. 28-35)

28 Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários; e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. 29 Então, o seu conservo, caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê paciente comigo, e te pagarei. 30 Ele, entretanto, não quis; antes, indo-se, o lançou na prisão, até que saldasse a dívida. 31 Vendo os seus companheiros o que se havia passado, entristeceram-se muito e foram relatar ao seu senhor tudo que acontecera. 32 Então, o seu senhor, chamando-o, lhe disse: Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste; 33 não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti? 34 E, indignando-se, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. 35 Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão.

Saindo da presença do seu senhor, que o perdoou, o servo, antes devedor, tem um encontro com seu conservo, “que lhe devia cem denários; e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: ‘Paga-me o que me deves’.”(v. 28) Não havia tido tempo nem de se esquecer do que havia ocorrido, da dívida imensa que foi perdoado, e o servo age com agressão para com quem o devia. Ele não tinha entendido o princípio por detrás da atitude do seu senhor, rei.

O conservo, sendo sufocado pelo servo, antes devedor, “caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê paciente comigo, e te pagarei.” (v. 29) Aqui o conservo tem a mesma atitude do servo perante seu credor: pede tempo. Contudo, além da grande diferença do tamanho da dívida há alguns contrastes que podem ser destacados: O servo pediu tempo para pagar uma dívida impagável; o conservo pediu tempo para pagar uma dívida perfeitamente possível de ser paga. O servo precisaria trabalhar mais de 164 mil anos para sanar seu dividendo; o conservo necessitaria apenas 100 dias. A dívida do servo era 600 mil vezes maior que a do conservo, entretanto, foi perdoada; a do conservo sendo muito menor, não. O servo, ao pedir misericórdia, saiu livre e perdoado; o conservo, ao ter a mesma postura, foi lançado na prisão ainda devedor (v. 30).

Mas o rei, que ficou sabendo o que havia acontecido, chamando-o, disse-lhe: “Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda porque me suplicaste; não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de ti?” (v. 32, 33) O senhor perdoador exigiu a mesma postura e atitude por parte do servo que recebeu o perdão. Este, por não o ter feito, é entregue aos verdugos[8] até “que pagasse toda a dívida” (v. 34). Ou seja, até o final dos seus dias iria sofrer nas mãos de carrascos castigadores porque não havia entendido o princípio generoso por detrás da ação misericordiosa do rei, que o desculpou.

Jesus, através deste trecho da parábola, nos ensina muito mais que um exemplo, mas um princípio de cura.

Primeiro, cura das relações para com nosso próximo.

Já que aquele servo foi perdoado, deveria reproduzir esse princípio para com seus devedores. Por não entender esta lição, sua relação para com seu conservo se tornou violenta, destrutiva. Assim como com ele, também é conosco ao deixarmos de estender perdão, quando solicitados. Vejamos algumas consequências disto.

Quem não perdoa adoece (Tg 5.16): “Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados. Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.” Nossas relações são marcadas pelas chagas do rancor, da tristeza e do remorso. Cônjuges, filhos, pais, amigos e familiares que não ser perdoam e  levam durante anos o coração carregado de mágoas, deixando que suas relações adoeçam e, em alguns casos, até morram. Apenas a confissão de erros e pecados, somados a oração pode trazer restauração.

Quem não perdoa não pode ser perdoado (Mt 6.12): “perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores”. Este trecho da oração dominical é muito negligenciado. A expressão “assim como” pode ser entendida como “na mesma proporção”, “da mesma maneira”. Logo, na medida em que vamos perdoando nossos irmãos, somos perdoados por Deus. O perdão das dívidas dos nossos ofensores é expressão de que entendemos o perdão abundante do Senhor Deus.

Quem não perdoa não tem as memórias curadas (Fp 3.13, 14): “Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.”Paulo aqui, que já havia enfrentando muitas experiências negativas, simplesmente as deixam para trás, as esquece. Ele olha para frente, olha para o Senhor Jesus, olha pra sua vocação de Apóstolo; só não olha para o sofrimento que passou pois teve suas memórias curadas. Há pessoas tão tristes e amarguradas que não conseguem olhar para o futuro e planejar. As mágoas do passado as impedem de viver o presente e sonhar com um futuro nas mãos do Senhor.

Segundo, cura das relações com Deus

É essencial dizer aqui que Deus, através da cruz de Cristo, já nos habilitou a nos relacionar diretamente e plenamente com Ele mesmo (Ef 3.12; 2 Co 5.18). Nossa salvação foi comprada na cruz, contudo, mesmo sendo salvos, infelizmente somos pecadores e, nesta condição, podemos entristecer o Espirito Santo de Deus (Ef 4.30), necessitando, assim, de que nos arrependamos, trazendo a “cura” para nosso relacionamento com Deus. O perdão de Deus é sempre a causa última da cura de nosso relacionamento com ele, mas nós devemos agir em resposta a este perdão. 

Por não ter perdoado seu conservo, em resposta ao perdão recebido do seu Senhor, o rei que o havia perdoado, chamou o servo e o entregou para o castigo por sua dívida. Quando não perdoamos nosso próximo revelamos que nosso coração está fechado para o perdão até mesmo de Deus. Pois quem recebe verdadeiramente o perdão divino, aprende a perdoar seu próximo. A Bíblia nos mostra algumas implicações disto.

Quem não perdoa não pode orar (Mc 11.25): “E, quando estiverdes orando, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai, para que vosso Pai celestial vos perdoe as vossas ofensas”. Se no momento de nossas orações lembrarmos de alguém que deve ser perdoado por nós, imediatamente, ali mesmo, devemos perdoar. A falta de perdão, impropera nossas orações. Quem sabe não há orações nossas que foram invalidadas por causa de nossos corações rancorosos?

Quem não perdoa não pode adorar (Mt 5.23-24): “Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.” Quando formos adorar à Deus quer através de cânticos, obras de misericórdia ou, como no caso deste texto, de ofertas, e lembrarmos de que algum irmão em Cristo tem algo contra nós, devemos interromper a prática e imediatamente buscar reconciliação. Deus é muito mais adorado na prática do perdão do que nas outras coisas. Ele só aceita nossa oferta, se nosso coração estiver em paz com nosso próximo. Observe que aqui, Jesus está partindo do princípio que somos os ofendidos, pois, como já foi dito, não importa se somos os ofensores ou ofendidos, o perdão deve ser abundante em nossos relacionamentos.

O perdão cura nossas relações com nosso próximo e com Deus, por isso é uma prática a ser cultivada.

Conclusão

O tema desta parábola não é a salvação dos pecadores, mas sim o perdão entre irmãos. Jesus adverte que Deus não pode nos perdoar se não tivermos um coração humilde e contrito (como do conservo). É pela forma de tratar os outros que revelamos a verdadeira condição de nosso coração. Quando nosso coração é humilde e contrito, perdoamos nossos irmãos com prazer (como o rei). Mas onde há orgulho e desejo de vingança (como o servo) não pode haver verdadeiro arrependimento, o que significa, também, que Deus não pode nos perdoar (Mt 6.14-15).

No versículo 31 os companheiros do conservo viram o que estavam acontecendo, se entristeceram e denunciaram a injustiça. Quantas vezes enxergamos (quando enxergamos) alguma injustiça e deixamos de nos mover, agir (denunciar)? Ou pior, o quanto tenho deixado de me entristecer diante das injustiças percebidas na sociedade? Este versículo deve nos estimular a, com sabedoria e motivações corretas, sermos agentes restauradores das relações feridas, ainda que não sejamos nós os envolvidos diretos. Ser mediador da cura é um privilégio que podemos ter.

Há um dito popular que diz que “o tempo cura tudo”, o que é uma tremenda mentira de satanás. Como vimos, não devemos deixar o tempo passar, mas procurar resolver o mais rápido possível. Não podemos confiar no tempo para resolver a situação, mas na Palavra de Deus que nos instrui perfeitamente. E ela nos diz que o perdão é uma prática a ser cultivada e nela devemos investir pois: (1) o perdão deve ser um hábito em nossas vidas; porque (2) Deus já nos perdoou abundantemente; e, por fim, porque (3) o perdão cura as relações.

Exercício:

Olhe para seu coração, ore, busque na memória e liste num papel as pessoas que você precisa perdoar e as pessoas que precisam te perdoar. Após isto, em oração, com sabedoria e humildade, procure se reconciliar, perdoando, uma por uma.


Bibliografia

[1] WIERSBE, Warren W. Novo Testamento: Vol. 1. Santo André: Geográfica, 2006. p. 83. Comentário Bíblico Expositivo.

[2] LOPES, Hernandes Dias. Perdão: cura e restauração dos relacionamentos familiares. 2013. Retirada apenas as citações de autores terceiros. Disponível em: <http://goo.gl/rUWrB3>. Acesso em: 29 ago. 2016.

[3] CARSON, D. A.. O Comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010. P. 473.

[4] HENDRIKSEN, William. Mateus: Vol. 22. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. P. 246. (Comentário do Novo Testamento).

[5] DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA (Org.). Hábito. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=hábito>. Acesso em: 29 ago. 2016.

[6] Herodes Antipas governou a Galiléia e a Peréia de 4 a.C. a 39 d.C. Foi ele quem mandou matar João Batista (Mt 14.1-12). Jesus o chamou de “raposa” (Lc 13.32).

[7] RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Curitiba-PR: Editora Evangélica Esperança, 1998. p. 209. (Comentário Esperança).

[8] Verdugo (vs. 34): Pessoa encarregada de castigar.

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