Rebelde

Não fui um adolescente muito rebelde, embora meus pais discordem. Eu até tentei ser revoltado, desobediente e nervosinho, mas minha mãe era mais nervosa do que eu. Para minha tristeza na época, mas alegria atual, sempre mostrou quem mandava. E como mandava. Mandava mesmo. De verdade. Sério. A “véia” era braba demais. Não que ela fosse velha de verdade. Mas eu a chamava assim, vai entender.

Nem sempre tivemos empregada, então ela distribuía as atividades domésticas. Entre várias delas, lavar o banheiro era minha responsabilidade. Mas eu odiava lavar banheiro. Não pela limpeza em si. Até gostava da parte de esfregar, passar bucha em tudo, etc. Até porque tinha que ser bem limpo, afin os padrões de higienização da minha mãe matariam de inveja qualquer órgão sanitário. Se ela fosse uma empresa, provavelmente seu lema seria “limpeza do higiene da assepsia, porque até mesmo a limpeza precisa ser limpa”. Pode parecer exagero, mas tente fazer uma faxina com ela para ver se não vai usar o resto de suas forças para chamar o SAMU.

Como eu disse, não me importava de limpar, cumprindo os altos padrões maternos impostos opressivamente sobre mim. O que eu não gostava é de secar. Aparentemente os banheiros possuem portais no espaço-tempo que transportam a água para outro lugar até o momento que você tenta secá-lo. Quanto mais você passa o pano, mais mina água do além. Passa o pano, torce o pano no balde, passa o pano novamente e torce de novo, num ciclo sem fim. Mas a água não acaba! Nessa época me lembro de estudar sobre as nascentes dos rios que estavam secando por causa do desmatamento e pensar comigo mesmo: “vamos construir banheiros e tentar secá-los. Essa nascente não seca com desmatamento.” Eu realmente era um gênio juvenil. Um mini cientista desperdiçado.

Mas uma vez minha mãe me mandou lavar o banheiro e eu respondi com um sonoro “não”. Eu sei, isso pode não parecer muito grave hoje em dia, infelizmente. Mas na época, responder uma ordem direta e justa dos pais era assinar atestado de óbito. Contudo, eu tinha meus motivos. Havia pegado uma fita K7 da banda Planet Hemp com um colega da escola. Planet Hemp foi uma banda de rock dos anos 90 que basicamente fazia apologia às drogas e incitava a revolta contra o sistema, qualquer sistema, em suas letras. Eu estava com a fita há uma semana, tempo suficiente para encher minha mente juvenil de várias palavras de ordem, bordões revolucionários incompreensíveis para mim, e principalmente de uma revolta infundada. Eu queria ser livre, mesmo sem saber o porquê ou o que faria com essa suposta liberdade. Não duvido que, caso eu conseguisse essa pretensa “liberdade”, viraria pagodeiro e cantaria: “O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade, se estou na solidão pensando em você…” (Só pra Contrariar, 1994).

Diante do meu “não”, minha mãe reagiu com amorosas juras de morte, caso fosse desobedecida. Eu não deixei por menos. Iria usar todo meu arsenal argumentativo recém aprendido com ela. Eu não me submeteria ao sistema opressor da minha mãe. Jamais. Enchi meus pulmões de ar, pronto para gritar… mas fui interrompido com um grito mais alto do que eu conseguiria dar. Minha mãe esbravejou: “É melhor você estar pronto para sofrer as consequências do que você está prestes a dizer! Pegue a vassoura, rodo, balde, bucha, sabão e vá lavar o banheiro a-go-ra!” Falou isso com uma voz de trovão, apontando para o banheiro.

Com todo o ódio do meu coração revolucionário peguei o material de limpeza, me tranquei no banheiro, coloquei a fita K7 do Planet Hemp e o lavei. Mas se minha mãe achava que eu deixaria barato, estava enganada. Eu esfregaria aquele banheiro com toda a raiva que eu estava, gritando a plenos pulmões: “se você tem amor pelo que tem no peito, D2 mas mantenha o respeito”! Esfreguei o chão, as paredes, o box, a pia, o vaso, o espelho e até mesmo a maçaneta da porta. “Pegue essa revolta”, pensava. Mal sabia o quanto era irônico eu cantar “se você tem amor pelo que tem no peito, mantenha o respeito”, da banda que tinha me enchido de ira. Minha vida, numa frase.

Também sequei aquele chão com muita raiva. Como a água não parava de minar eu, por fim, me joguei no chão pra secar com minha própria roupa. Quer ato mais insubordinado do que dar “pití” na frente de ninguém? Ao menos minha roupa ajudou a secar o banheiro e eu acabei o serviço.

A revolta, que ainda permanecia no meu coração, não durou muito. Logo mais à noite, minha mãe fez carne de panela, e não há revolução que resista à comida mineira bem preparada. Se Esaú vendeu seu direito de primogenitura para Jacó por lentilhas eu não poderia me vender por comida mineira? Fui mais esperto ele, pelo menos.

Naquela noite, depois da janta, meus pais conversaram comigo. Me explicaram duas coisas que jamais esqueci. Primeiro, que eu deveria obedecê-los se quisesse morar naquela casa. Eles pagavam as contas, me criavam, me educavam e amavam, assim, o mínimo que eu poderia fazer é ajudá-los e obedecê-los. Segundo, que se eu tivesse amor aos meus dentes e à vida, jamais deveria tentar algo parecido com aquela “revolução idiota”.
Achei os argumentos plausíveis. Eu podia ser uma criança revolucionária, mas eu tinha amor à vida, né? Também gostava da comida. Nesta altura da minha experiência, ninguém havia me falado ainda, mas não compensa morrer por uma causa que não seja eterna. Anos depois aprendi o princípio bíblico de honrar os pais e a importância da disciplina. Muitos anos depois, descobri os riscos do discurso de bandas como Planet Hemp. Mas se tem algo que aprendi ali, imediatamente, é que o amor não exclui a disciplina. E eu era amado até demais!

Aqui fica algumas lições:
1. Tarefas domésticas podem ser um grande treinamento de humildade e tratamento para mentes desocupadas. Se você tem filhos, que tal ensiná-los ajudar em casa? A mão deles não vai cair, muito pelo contrário, eles ficarão mais fortes e treinados para a vida adulta. A sua casa não é hotel para ninguém, sim um lar onde podem se sentir confortáveis e todos devem ajudar a manter. Cada um à sua maneira.

2. Comida é sempre uma forma maravilhosa de acalmar os ânimos. Depois que as eleições (ou qualquer outro momento crítico) passarem, marque um bom almoço com aqueles que brigou indevidamente. Se for carne de panela, me chame. Fica a dica.

3. Normalmente jovens revolucionários não pensam muito. É triste, mas é real. Podem até ler algumas coisas, ouvir outras, mas lhes falta profundidade, conhecimento e, principalmente, sensatez. Contudo, se tem algo que jovens revolucionários fazem bem é repetir bordões e palavras de ordem, como eu fiz na história. Quase nunca sabem o que isso significa, mas continuam repetindo incessantemente em discursos inflamados. Em tempos de controvérsia política como o nosso isso não mudou. Com discrição, observo as pessoas repetindo bordões e palavras de ordem sem saber seu significado e origem; sem saber que estão sendo maliciosamente usados como massa de manobra. Isso serve tanto para a Esquerda quanto para a Direita, embora eu note que seja mais comum à Esquerda brasileira. Mas talvez eu também esteja repetindo mais um bordão.

4. Quem ama também corrige. Aliás, a correção é expressão prática de quem ama. Pais que não corrigem seus filhos por negligência, preguiça ou, como dizem hoje, por medo de traumatizá-los, estão deixando seus filhos órfãos com pais vivos. Estão abandonando seus filhos a mercê de si mesmos, como presas fáceis num mundo perverso que estamos.
Corrigir filhos é desgastante e exigirá mais do que normalmente temos para dar. Afinal, eles demoram para aprender. Mas é a vocação e responsabilidade inegociável de todo e qualquer pai e mãe.
É importante lembrar que Deus, por nos amar, não nos deixa sem correção (Hb 12.6; Pv 3.11).

5. Embora eu tenha sido convencido por meus pais, mediante correção física e verbal, foi a expressão do amor deles que ficou. Corrija aqueles que ama, ainda que tenha que ser duro. Mas ame. Um filho perdoa tapas e chineladas, mas tem dificuldade de perdoar falta de amor.

6. Se tendemos a ser rebeldes com nossos pais, imagine como somos com Deus? É, somos pecadores e desobedecemos o Senhor. Achamos as leis que ele estabeleceu no mundo que ele criou e governa injustas. Consideramos a maneira como a liturgia deve ser na igreja rígida demais. Somos demoniacamente revolucionários por natureza. Tudo porque Adão e Eva ouviram a fita K7 gravada por satanás, no Éden. Mas também somos amados. Deus expressou esse amor enviando seu Filho Jesus para sofrer o castigo no lugar de todo aquele que crê. E nós, crendo, podemos obedecer o Senhor por amor. Afinal, ele nos amou primeiro. E muito.

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PS.: Eu ia postar uma foto minha dessa época, mas depois e olhar a imagem decidi me privar dessa vergonha pública. Por isso, uso uma imagem genérica. É melhor assim.

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